domingo, 27 de fevereiro de 2011

Vou-me embora desta casa! | Moacyr Scliar


Existe alguma coisa pior do que ter quatro anos e brigar com o pai?

(Existe: é ser pai e brigar com o filho de quatro anos. Mas isto a criança só descobre depois de muitos anos.

Para um garoto de quatro anos, brigar com o pai, ou com a mãe, significa romper com o mundo. Uma ruptura aliás freqüente, porque há poucas coisas que um guri goste mais de fazer do que brigar. Ele briga porque quer comer e porque não quer comer; porque quer se vestir ou porque não quer se vestir; e porque não quer tomar banho, não quer dormir, não quer juntar as coisas que deixou espalhadas pelo chão. E porque quer uma lancha com pilhas, e uma bicicleta, e uma nave espacial _ de verdade. Todas estas coisas geram bate-boca, ao final do qual o garoto diz, ultrajado:

- Ah, é? Pois então...

Pois então o quê? Um país pode ameaçar outro com mísseis, ou com marines, ou com bloqueio; um adulto diz que vai quebrar a cara do inimigo; mas, um garoto, pode ameaçar com quê? Com o único trunfo que eles têm:

- Eu vou-me embora desta casa!

Ao que, invariavelmente, os pais respondem: vai, vai de uma vez. Ué, mas não seria o caso deles suplicarem, não meu filho, não vai, não abandona teus velhos pais? Meio incrédulo, o guri repete:

- Olha que eu vou, hein?

Vai, é a dura resposta. E aí o menino não tem outro jeito: para salvar sua honra (e como têm honra, os garotos de quatro anos!) ele tem de partir. Começa arrumando a mala: numa sacola de plástico, ele coloca os objetos mais necessários: um revólver de plástico, os homenzinhos do Playmobil (aos quatros anos, o Kit de sobrevivência é notavelmente restrito).

Enquanto isto, os pais estão jantando, ou vendo TV, aparentemente indiferentes ao grande passo que vai ser dado. O que só reforça a disposição do filho pródigo em potencial: esses aí não me merecem, eu vou-me embora mesmo.

Mas, para onde? para onde, José? Manuel Bandeira podia ir para Pasárgada, onde era amigo do rei; aos quatro anos, contudo, a relação com a realeza é muito remota. O guri abre a porta da rua (essas coisas
são mais dramáticas em casa do que em apartamentos); olha para fora; está escuro, está frio, chove. Ele hesita; está agora em território de ninguém, tão diminuto quanto o é a sua independência. Ir ou não ir? Nem Hamlet viveu dilema tão cruel. Lá de dentro vem um grito:

- Fecha essa porta que está frio!

Esta é a linha dura (pai ou mãe). Mas sempre há um mediador - pai ou mãe - que negocia um recuo honroso:

- Está bem, vem para dentro. Vamos esquecer tudo!

O garoto resiste, com toda a bravura que ainda lhe resta. Por fim, ele volta, mas sob condições: quando o pai for ao Centro, ele trará um trem elétrico, desde que não seja muito caro, naturalmente. A paz enfim alcançada, o garoto volta para dentro. Até a próxima briga. Quando, então:

- Eu vou-me embora desta casa!

Foi nessa madrugada que Moacyr Scliar foi embora, deixou todos nós um pouco órfãos. Órfãos de suas palavras, de seu caráter, de seu magnífico talento. Autor de mais de setenta livros, imortal da Academia Brasileira de Letras e cronista dos principais jornais do país. Nossa singela homenagem e a solidariedade à família Scliar.

Postagem de Vinícius Dill S.

8 comentários:

  1. Perdemos um mestre. Livros de Moacyr Scliar são ótimos. Quem não leu, leia. Vale a pena.

    ResponderExcluir
  2. Perdemos Moacyr Scliar, mas o céu ganhou uma doce estrela.

    ResponderExcluir
  3. Triste pelo Moacyr Scliar. Grande perda, ótimo escritor e cronista.

    ResponderExcluir
  4. Encantada com a sutileza e delicadeza do texto. Descanse em paz Moacyr.

    ResponderExcluir
  5. Adorei o texto! Muito lindo!

    Um luto imenso para nós, escritores, e também para todos os amantes da boa literatura.

    ResponderExcluir
  6. Esse texto realmente tem a cara de Scliar, ágil, bem humorado, e que analisa uma questão aparentemente simples de maneira complexa, dentro de seu próprio universo.

    Moacyr Scliar foi um dos escritores que mais me influenciou a gostar e querer escrever. Devo muito a ele. Hoje é um dia triste para todos nós, amantes de sua majestosa literatura e inquestionável simpatia.

    Obrigado Mestre!

    ResponderExcluir
  7. Tchê!

    Este é um gaúcho que nos deixa falta! Mal soube da morte dele e já senti saudade dele!

    Assistindo uma das entrevistas que ele concebeu, ele falou um pouco deste assunto, entre "Pais e Filhos":

    "A grande diferença entre pais e filhos é aquilo que os pais deixam de dizer para os filhos e os filhos deixam de dizer para os pais, aí um fica sem saber o que o outro pensa".

    Abraço, e sucesso ao blog!

    ResponderExcluir

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...